Com acúmulo de reveses no Supremo Tribunal Federal, como a cassação de decisões que reconhecem vínculo de emprego, ministros do Tribunal Superior do Trabalho passaram a defender que o tribunal veja com outros olhos as demandas que envolvam relações laborais diversas da CLT. O foco é preservar a competência constitucional da Justiça do Trabalho para apreciar todos os conflitos decorrentes das relações de trabalho, sob o risco de ser sentenciada a arbitrar apenas verbas rescisórias.

A queda de braço com o STF foi personificada na controvérsia envolvendo a existência ou não do vínculo de emprego entre motoristas e entregadores de plataformas digitais, como Uber e Ifood. O TST, contudo, já vem perdendo essa batalha há algum tempo – com direito a recados e críticas dos ministros do Supremo em seus votos.

Levantamentos feitos pelo núcleo de estudos “O Trabalho Além do Direito do Trabalho”, da Faculdade de Direito da USP, em parceria com a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), mostram que, em um universo de cerca de 1.500 decisões proferidas pelo STF em sede de matérias trabalhistas nos últimos cinco anos, aproximadamente 75% reverteram decisões da Justiça do Trabalho. Os casos envolvem não só motoristas de aplicativo, mas diversas outras categorias cuja característica de autônomo, defendida por empresas, não foi reconhecida pela JT, que enxergou fraudes em todos eles.

Ao cassar as decisões, ministros do STF se amparam no conceito constitucional da livre iniciativa e acusam a Justiça do Trabalho de descumprir deliberadamente a jurisprudência do Supremo ao reconhecer vínculos de emprego em contratos alternativos de trabalho, a despeito de precedentes firmados pela corte nos últimos anos que validaram a terceirização (ADPF 324 e Tema 725) e a “pejotização” (RCL 47.843).

TST em 2022 e em 2023

Parte da Justiça do Trabalho, por sua vez, sustenta que a legalidade em si dessas novas formas de contratação não é objeto dos litígios e, na apreciação dos casos concretos, as fraudes são caracterizadas diante da identificação dos princípios que configuram uma relação de emprego, como pessoalidade, não eventualidade ou habitualidade, onerosidade e subordinação.

“Tais precedentes vêm sendo invocados para levar ao STF discussões de reconhecimento de vínculo de emprego das mais diversas categorias, como advogados, médicos, trabalhadores por aplicativos, representantes comerciais, etc. Todas essas categorias – à exceção dos trabalhadores por aplicativos – possuem legislações próprias, com regras que devem ser observadas para sua contratação, seja como profissional autônomo, seja como empregado, e nenhuma destas leis foi objeto de análise de constitucionalidade nos referidos precedentes”, defendeu Kátia Arruda, ao Anuário da Justiça Brasil. A ministra já votou no sentido de reconhecer a relação de emprego na atuação de trabalhadores por aplicativo, por exemplo.

Para Douglas Rodrigues, porém, é hora de o TST agir de forma pragmática, haja vista histórico de enxugamento da competência da Justiça do Trabalho desde a promulgação da Constituição de 1988. “Nós precisamos superar essas fronteiras do Direito do Trabalho, abraçar sem receio o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil, leis específicas (…) É preciso nos despir desse preconceito, dessa pré-compreensão que está levando o STF a cassar tantas decisões que, ao fim, podem nos levar ao cenário de esvaziamento absoluto que, no extremo, não mais justifique a existência dessa instituição”, sustentou o ministro, durante seminário na Faculdade de Direito da USP, em março.

Ives Gandra Filho é mais crítico. “Os excessos de protecionismo da JT e do TST, bem como a indisciplina judiciária deste ramo especializado da Justiça, têm sido responsáveis pela redução paulatina da competência da Justiça do Trabalho pelo STF, a ponto de termos regredido 35 anos em matéria de competência. Parece mais uma vez ter lugar a Terceira Lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário e de igual intensidade”, avaliou ao Anuário da Justiça.

A previsão apocalíptica não é em vão e as derrotas não são impostas apenas pelo Supremo. Em fevereiro, a ministra Nancy Andrighi, do STJ, afastou a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação que apontava fraude na relação autônoma e buscava o reconhecimento de vínculo de emprego. O juízo estadual suscitou conflito de competência por entender que a demanda deveria ser julgada pela JT, nos termos da EC 45/2004, mas a ministra decidiu que a Justiça comum é que deve validar ou não o negócio jurídico questionado para, só então, a autora pleitear os direitos trabalhistas previstos na CLT na Justiça do Trabalho (CC 202.726/SP).

“Do jeito que as coisas estão caminhando, a Justiça do Trabalho passaria a ser apenas aquela Justiça que simplesmente ditaria quais são as verbas a receber, mas quem diria se há ou não vínculo de emprego seria o juiz comum. Será como no Tribunal do Júri, em que quem define se o réu é ou não culpado é o júri e o juiz togado apenas faz a dosimetria da pena. É algo anômalo”, criticou o professor de Direito e Processo do Trabalho da USP e juiz do Trabalho da 15ª Região (Campinas), Guilherme Guimarães Feliciano.

Para Karolen Gualda Beber, advogada especialista em Direito do Trabalho, do escritório Natal & Manssur Advogados, é preciso que a Justiça do Trabalho pense além da CLT para resolver conflitos atuais envolvendo trabalhadores hipersuficientes. “Em sua grande maioria, as decisões da Justiça do Trabalho refletem essa ideia de que a fraude é a regra de qualquer nova forma de negociação, e, com isso, não se analisa a fundo a validade do pactuado”, analisa. “Seria essa a oportunidade de a Justiça analisar – se mediante uma nova realidade de trabalho ou formato de prestação de serviços – a viabilidade da aplicação das normas legais (que não apenas a legislação trabalhista), apurando-se, se aquele negócio firmado, naqueles moldes e mediante aquela negociação válida, foi cumprido pelas partes”.

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil  2024, lançado no Supremo Tribunal Federal. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). Acesse a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br). 

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