Reportagem aborda as complexidades do tema e as iniciativas adotadas para garantir trabalho digno aos povos originários 

Trabalho, na vida de um ser humano, pode ganhar diferentes significados simbólicos, econômicos, culturais e filosóficos. No caso dos povos originários, o trabalho está relacionado à inclusão social e produtiva, mas também ao território. “É imperioso que se assegure aos 266 povos indígenas que habitam o território brasileiro o respeito ao seu modo de vida e costumes, bem como o acesso a ambientes de trabalho que garantam e promovam a diversidade social e cultural”, afirma o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Lelio Bentes Corrêa. “Neste 19 de abril, a Justiça do Trabalho reafirma seu compromisso com a garantia e a efetividade de direitos sociais aos povos indígenas, em condição de equidade com os demais cidadãos e cidadãs brasileiros, sem qualquer discriminação”. 

De acordo com a subprocuradora-geral do Trabalho Edelamare Melo, autodeclarada indígena, coordenadora Nacional do Grupo de Trabalho dos Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas do Ministério Público do Trabalho, não se pode falar em povos indígenas sem lembrar sua identidade com a terra. “Trabalhar a terra é meio de obter condições de vida digna, é preservar a natureza e o que ela propicia como meio de subsistência”, assinala. “Assimilar esses contextos é ponto de partida para compreender os complexos desafios que se impõem para que os povos originários tenham garantidos liberdade, dignidade e trabalho decente”. 

Piores formas de trabalho

O problema é que são muitas as violações de direitos, diante de tamanha vulnerabilidade a que esses povos estão sujeitos. Aldeados, vivendo em áreas remotas e de difícil acesso, com pouco ou nenhum acesso à informação e a serviços públicos, ficam expostos a ameaças a direitos básicos e à própria existência. Elas vão desde o dano sobre recursos naturais causado por diferentes atividades econômicas (legais ou não) até o aliciamento para as piores formas de trabalho, segundo classificação da Organização Internacional do Trabalho.  

“Muitos trabalhadores indígenas são submetidos a formas de exploração e escravização, incluindo o trabalho forçado, a servidão por dívida, a retenção de documentos, o pagamento de salários abaixo do mínimo legal, a jornada excessiva, a falta de descanso e condições de trabalho insalubres. As mulheres ainda enfrentam desafios adicionais, como a violência de gênero, o assédio e a exploração sexual”, destaca Jônatas Andrade, juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Magistrado do trabalho do Tribunal Regional da 8ª Região (PA/AP), ele tem forte atuação contra o trabalho escravo e é um dos 11 magistrados brasileiros que se autodeclaram indígenas.

Segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, 675 indígenas foram resgatados de condições de trabalho análogas à escravidão entre 2002 e 2022. Isso representa 3% do total. Também são investigadas denúncias de aliciamento para a prática de crimes, como tráfico de drogas. No Brasil, 0,4% da população se autodeclara indígena, conforme o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Contudo, segundo a subprocuradora Edelamare, há subnotificação. 

Atividades econômicas

Em cada região, diferenciam-se as atividades econômicas que submetem indígenas a condições precárias de trabalho. “No Norte, é basicamente mineração ilegal e agronegócio. No Nordeste, o cultivo da cana de açúcar, as carvoarias e o extrativismo vegetal. Há registros da migração de indígenas do Centro-Oeste para o sul para a colheita de maçã”, exemplifica Edelamare Melo. 

Impactos ambientais

A degradação ambiental também interfere no grau de vulnerabilidade das comunidades. Estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificou que, entre 2011 e 2019, 74% das terras indígenas no Brasil ficaram mais expostas a ameaças ambientais, em relação ao período de 2001 e 2010. 

O estudo, chamado “Avaliação da vulnerabilidade ambiental das Terras Indígenas da Amazônia Brasileira”, aponta como problemas a expansão do desmatamento, os incêndios, a proximidade com rodovias, a degradação florestal e o avanço da mineração e da agropecuária. Esses impactos afetam, entre outras coisas, a disponibilidade de alimento e água. “Muitas vezes, essas pessoas se submetem a uma posição degradante de trabalho por imperativo de necessidade. Trabalham em troca de comida. Discordar, por vezes, pode levá-los à morte”, alerta a subprocuradora-geral do trabalho. 

Preconceito e discriminação

O juiz Jônatas Andrade observa que muitos indígenas ainda se veem obrigados a migrar para as cidades. Sem formação, ficam sujeitos a condições precárias de trabalho. “Infelizmente, os povos indígenas têm sido historicamente marginalizados e explorados, e a violação de seus direitos trabalhistas é um reflexo disso”, avalia. 

Quando buscam uma trajetória que viabilize sua inserção no mercado de trabalho, Edelamare Melo destaca que eles se expõem a outros problemas: falta ou dificuldade de se manterem nos sistemas formais de educação, preconceito, discriminação racial e cultural. 

Desafio complexo, medidas necessárias

Para o juiz, a garantia de condições dignas de trabalho é um desafio complexo que requer ações coordenadas do Estado, dos empregadores, da sociedade civil e das próprias comunidades indígenas. No entanto, ele ressalta a necessidade de incluir as comunidades no processo de tomada de decisões e garantir sua participação na elaboração de políticas e programas. “É importante, também, estimular o empreendedorismo e a economia solidária, promover a formação e a qualificação profissional, respeitando suas características culturais, e garantir o cumprimento dos direitos trabalhistas”. 

Acesso à Justiça

Aproximar as instituições do Sistema de Justiça dos povos indígenas é uma das medidas que contribuem para ampliar o acesso a informação e direitos, transpondo barreiras culturais e linguísticas. Para isso, existem normativos com força de lei que devem ser cumpridos pelos agentes públicos. 

No caso do Poder Judiciário, a Resolução 454/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prevê o diálogo interétnico e intercultural, de forma a assegurar a efetiva compreensão, pelo povo ou pela comunidade, do conteúdo e das consequências dos processos. A resolução também autoriza a produção de exames técnicos por profissional da Antropologia, a fim de que se conheçam as especificidades socioculturais do povo indígena. 

Ainda no Poder Judiciário, outras duas normas do CNJ tratam da temática: a Resolução 299/2019, que dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; e a Resolução 287/2019, que estabelece procedimentos para pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade e dá diretrizes para assegurar seus direitos na área criminal. 

No âmbito do Ministério Público, a Resolução 230 prevê o diálogo intercultural permanente, a aproximação e o estabelecimento de vínculos com os povos e as comunidades tradicionais, por meio de linguagem acessível e informação clara. Também sugere visitas periódicas aos territórios, para acompanhar demandas e apresentar informações. 

“As resoluções do CNJ e do CNMP trabalham com a questão do diálogo intercultural, com o conceito de território, e dão uma métrica para nossa atuação”, afirma a subprocuradora-geral.  

Justiça do Trabalho itinerante

A aproximação da Justiça do Trabalho com os povos indígenas demanda o deslocamento de estruturas de pessoal e física até eles. Ela se dá por meio da chamada Justiça Itinerante, que, na Justiça do Trabalho, existe desde 1995. A prática foi institucionalizada dez anos depois em toda a Justiça, com a Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45/2004).

Jônatas Andrade também salienta a importância de parcerias com associações e lideranças indígenas e defende a capacitação de agentes públicos e da advocacia sobre as especificidades culturais e linguísticas de trabalhadores indígenas, além de campanhas de divulgação e informação sobre os direitos trabalhistas.

Passado e futuro

Foi em agosto de 2003 que, pela primeira vez, a Justiça Itinerante promoveu uma audiência trabalhista em uma terra indígena. Foi na aldeia de Jaguapiru, próxima a Dourados (MS). O representante do Tribunal Superior do Trabalho, na ocasião, foi o ministro Lelio Bentes Corrêa, que hoje preside a Corte. 

De 106 audiências realizadas em Jaguapiru, 32 resultaram em acordos entre indígenas e usinas de álcool e açúcar. A maioria dos trabalhadores reivindicava depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e direitos como férias, 13º salário e anotação do tempo trabalhado em carteira. 

No fim de junho deste ano, o ministro deverá participar de outra iniciativa: o projeto Itinerância Oiapoque, que promoverá reuniões com comunidades de povos originários. A Justiça Trabalhista, por meio do TRT-8, atenderá demandas e promoverá ações de educação sobre trabalho escravo, trabalho infantil e direitos trabalhistas, além de disponibilizar serviços em parceria com outros órgãos públicos. 

“A fim de superar os obstáculos geográficos e telemáticos ainda existentes no cumprimento de sua missão, a Justiça do Trabalho promove a Justiça Itinerante, visando garantir o acesso de povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas ao Poder Judiciário, de modo que, na concretização do direito humano ao trabalho decente, cumpra-se o imperativo ético da Agenda 2030 da ONU, e ninguém seja deixado para trás”, afirma Lelio Bentes Corrêa.

Àwúre

No idioma africano iorubá, Àwúre significa bênção. Esse é o nome de um projeto desenvolvido pelo MPT, pela OIT e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para promover o respeito pela identidade, pela diversidade e pelo pluralismo de comunidades tradicionais. 

Além de encaminhar denúncias e demandas, o objetivo é resgatar as comunidades de maior vulnerabilidade por meio de inclusão social e produtiva. As ações promovem os equipamentos e a formação técnica necessária para a produção agroecológica e sua comercialização, com respeito e fortalecimento da identidade cultural. Segundo a subprocuradora-geral, o foco é a destinação do excedente gerado na produção de alimentos para garantir a subsistência, respeitando hábitos e tradições dos povos originários.   

(Natália Pianegonda//CF)

Fonte: TST – 19.04.2023

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