MPF busca saber se instituição financiou o tráfico de pessoas escravizadas e cobrará eventual reparação.

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão abriu um inquérito civil público para investigar o papel do Banco do Brasil e de seus acionistas na escravidão e no tráfico negreiro durante o Império. Trata-se da primeira investigação deste tipo no Brasil. Os procuradores pretendem “buscar mecanismos de justiça que assegurem a eventual reparação necessária aos descendentes dos negros africanos escravizados, em todos os âmbitos”.

O procedimento foi revelado pela BBC News Brasil. Em resposta, o Banco do Brasil apontou que “considera que a história do País e suas relações com a escravidão das comunidades negras precisam ser um processo de reflexão permanente”. “Em relação à reparação histórica, o BB entende que essa é uma responsabilidade de toda a sociedade”.

Três procuradores assinam a abertura do inquérito: Jaime Mitropoulos, Júlio José Araujo Junior e Aline Caixeta. Eles querem ainda “trazer à tona novas memórias coletivas, a partir das vítimas, sobre o papel do banco e os impactos que ele causou à vida de pessoas negras”.

Querem ainda reunir informações sobre o papel dos traficantes na constituição do banco por meio do financiamento do comércio de escravos e da escravidão. “É fundamental revisitar a história com ênfase no direito à verdade, de modo a garantir uma compreensão da história que previna a ocorrência de novos crimes contra a humanidade”, afirmaram os procuradores. Por fim, defendem ser necessário buscar mecanismos de justiça que assegurem “a eventual reparação necessária aos descendentes dos negros africanos escravizados, em todos os âmbitos”.

UNIVERSIDADES. A ação nasceu de uma notícia de fato apresentada por 14 professores universitários de nove universidades brasileiras e duas americanas. Além de instaurar o inquérito, os procuradores enviaram a Tarciana Paula Gomes Medeiros, presidente do Banco do Brasil, um ofício no qual pedem uma reunião com a direção da instituição financeira no dia 27 de outubro. Também mandaram convites semelhantes aos ministros Silvio Almeida (Direitos Humanos) e Anielle Franco (Igualdade Racial).

A assessoria de Almeida e de Anielle afirmaram que os dois ministérios devem estar representados na reunião. O Estadão procurou o Banco do Brasil, que informou que foi notificado anteontem sobre o inquérito e vai comparecer à reunião. “O jurídico da instituição analisará o teor do documento e prestará as informações necessárias dentro do prazo previsto”, informou o banco, que divulgou nota em que se coloca à disposição do MPF.

Do banco, o Ministério Público Federal quer receber informações sobre “a posição da instituição a respeito da sua relação com o tráfico de pessoas negras escravizadas e sobre a existência de pesquisas financiadas pelo Banco do Brasil para avaliar a narrativa sobre a sua própria história”.

Também pretende receber informações sobre traficantes de escravos e sua relação com o banco e sobre financiamentos relacionados com a escravidão, além de dados sobre “iniciativas do banco com finalidades específicas de reparação em relação a esse período”.

‘FORÇA MOTRIZ’. De acordo com o trabalho feito pelos professores, que subsidia a abertura do inquérito, “diferentemente de civilizações que, ao longo da história, utilizaram o trabalho escravo como mecanismo de acumulação de capital, o Império do Brasil, à semelhança dos EUA, tivera no comércio de seres humanos e na escravidão africana sua força motriz”. Ainda segundo eles, a escravidão

conformava hierarquias sociais; pautava a política, local e nacional; definia a micro e macroeconomia; e, por fim, estava na base da ideia de civilização que constituiu o País em formação. Assim, as instituições formadas no processo de afirmação do Estado brasileiro foram, naturalmente, moduladas pelo que convencionamos chamar de sistema escravista”.

Os pesquisadores apontaram para o quadro societário do banco e sua diretoria no século 19 como indicativos da relação entre o patrimônio do Banco e o capital formado no comércio clandestino de africanos e na própria escravidão.

VISCONDE. Um exemplo seria José Bernardino de Sá, barão e visconde de Vila Nova do Minho, o maior traficante do Atlântico Sul nos últimos vinte anos de funcionamento do tráfico de africanos para o Brasil. “Entre 1825 e 1851, o visconde traficante fora responsável por 50 viagens negreiras para o Brasil que desembarcaram cerca de 19 mil africanos”. Para o grupo, não era por acaso que o maior traficante do país era também o mais importante subscritor individual do banco criado em 1853. “No ano de sua morte, em 1855, possuía nada menos que 5.216 ações do Banco do Brasil, em um montante que orbitava em torno de 1 mil contos de réis.”

Para os procuradores, “o tráfico transatlântico de pessoas negras escravizadas foi a maior atrocidade cometida na história da humanidade”. Ele tem impactos duradouros em nossa sociedade e na constituição das diversas manifestações do racismo estrutural e institucional nas relações sociais.

Ao Estadão, o procurador Araujo Júnior afirmou que o objetivo inicial do inquérito é suscitar o debate sobre o tema, que já está muito avançado nos Estados Unidos e no Reino Unido, mas que ainda não chegara ao Brasil. Para ele e seus colegas, “a persistência de apagamentos devido à força estrutural e estruturante do racismo é prova de que se deve reavivar outras memórias e retirar o véu que cobre as narrativas oficiais e autor representações sobre instituições fundantes do Estado brasileiro que sobrevivem até hoje”. •

“Não se trata de ação civil pública pedindo já reparações ou indenização, mas de um inquérito. É necessário aprofundar o debate público”

Júlio José Araujo Jr., procurador da República

O Estado de S. Paulo. 29 Setembro de 2023 Por: MARCELO GODOY

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